domingo, 1 de maio de 2011

O MINISTRO

O diretor da revista queria porque queria a matéria, mas o assessor do Ministério da Cultura garantia, por telefone, que com menos de um mês de governo seria impossível marcar entrevista com o novo ministro. O jeito era ir pra Brasília e cercar ele, disse o assessor, para afirmar em seguida que, nesse caso, se o repórter acompanhasse de perto a agenda do ministro, e se tivesse disposição para esperar, poderia existir, quem sabe, a possibilidade de uns 15 minutos de entrevista. Dito e feito. O repórter passou três dias em Brasília acompanhando a agenda do ministro, tomou boas doses de chá de cadeira na sala de espera do gabinete dele e conseguiu seus quinze minutos, entrevista e foto praticamente ao mesmo tempo, tudo bem rápido, entre um compromisso e outro da apertada agenda do ministro da Cultura.

O resultado tá aí embaixo. As fotos são de Felipe Barra, grande desbravador dos Sertões brasileiros

Revista Istoé Gente, edição 182, de 27 de janeiro de 2003

“O violão tem ficado num canto, sem sair da capa. É sinal de que estou me dedicando”

Em uma das muitas audiências com autoridades, o ministro da Cultura Gilberto Gil recebeu em seu gabinete, na quarta-feira 8, o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o uruguaio Enrique Iglesias, acompanhado de dois diretores da instituição. Durante cerca de uma hora, Gil e a comitiva do banco discutiram possibilidades de incentivos à cultura do País, com toda a formalidade que reuniões desse tipo costumam exigir. Até que, no fim do encontro, os dois diretores se encarregaram de quebrar o protocolo avisando que, se saíssem dali sem um autógrafo do ministro, seriam impedidos pelos filhos de entrar em casa.
Contada pelo secretário-executivo do Ministério da Cultura, Juca Ferreira, essa história de coxia faz parte do show do ministro e ilustra bem o que têm sido os primeiros dias dele no governo. “Gil é sistemático, com uma capacidade de trabalho enorme. Ao mesmo tempo todos aqui têm a dimensão do artista, o que acaba criando um clima mágico, que o Ministério da Cultura sempre deveria ter”, diz Juca, ex-vice-presidente da ONG Onda Azul, voltada para o meio-ambiente, criada pelo atual ministro.
A capacidade de trabalho citada por Juca pode ser medida pela agenda do ministro, que não raramente ultrapassa 12 horas por dia. Foi assim, por exemplo, na quarta-feira 15, quando Gil empossou o primeiro escalão de seu Ministério numa cerimônia no auditório da Funarte, que começou às 10h. Na mesma quarta-feira, outra solenidade no Palácio do Planalto – em que o presidente em exercício José Alencar assinou o decreto declarando 2003 o ano comemorativo do centenário de nascimento de Ary Barroso – acabou atrasando a agenda do ministro. Ele só deixou seu novo
palco de trabalho depois das 22h30, após cumprir todas as audiências previstas para o dia, entre elas encontros com o presidente da Fundação Roberto Marinho, José Roberto Marinho, com integrantes do setor de Cultura do Movimento dos Sem Terra e com o consultor da Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni.
O encontro com Boni mostrou que Gil também usa códigos. Ao chegar ao gabinete do ministro, o ex-vice-presidente de coordenação estratégica da Globo disse à recepcionista que estava ali para “buscar uns instrumentos”. Sem entender nada e nem reconhecer o convidado, a funcionária do Ministério disse que não havia instrumentos no gabinete. Bem-humorado, Boni retrucou. “Vai lá dentro, por favor, e diz que eu vim buscar uns instrumentos.” Constrangida, a recepcionista voltou dizendo que ele podia entrar. Na saída, o consultor da Globo minimizou a brincadeira, e disse que levou ao ministro a proposta da criação de uma loteria da Cultura. “Espero que ele, que é muito criativo, amplie a verba que tem”, disse, sem dar maiores detalhes sobre a idéia.
Em Brasília, Gil mora no hotel da Academia de Tênis, um complexo com dez cinemas, oito restaurantes e dezenas de lojas situado a dez minutos da Esplanada dos Ministérios. O dia de trabalho começa entre 9h e 9h30, quando ele chega ao gabinete – sempre de terno e gravata ou, em dias de compromissos menos formais, vestindo blazer. O gabinete, aliás, ainda não tem a cara do novo ministro. “Acho o gabinete sem graça”, diz ele, que no momento não pensa em mudanças no local. “Por enquanto não vejo necessidade.”
Para se dedicar à nova função, o músico mudou sua rotina. O violão fica esquecido no hotel. O único hábito que fez questão de manter são os exercícios diários ao acordar, entre 7h e 7h30. Antes do café da manhã, o ministro dedica de 1h a 1h30 à prática da ioga e da ritmoprática, um conjunto de exercícios corporais (inclui alongamento e respiração) indicados por Tomio Kikuchi, o mestre da macrobiótica no Brasil. “Sem os exercícios não poderia agüentar o ritmo. Eles são o alimento básico da musculatura, que acabam se refletindo na vontade de trabalhar e servem como estimulante nesse início de trabalho”, explica Gil.
A macrobiótica também está presente no almoço do ministro, que acontece quase sempre em seu gabinete entre 14h30 e 15h. A comida vem de um restaurante próximo ao Ministério. “Não conheço direito essa comida, mas acho que até agora arrumei tudo certo na bandeja”, diz o garçom Antônio Martins, 48, há seis anos no Ministério da Cultura. Depois do almoço, Gil fica à base de água durante o resto do dia, além de um chá, de erva-cidreira ou de maçã, entre as 17h e 18h. E pára por aí qualquer tipo de rotina na vida do ministro. “Venho sendo atropelado por pedidos de audiências rápidas. Minha rotina fica em função da agenda”, justifica o compositor.
Para Juca Ferreira, o ritmo intenso de audiências com o ministro deve diminuir no fim do primeiro mês de trabalho. “Esse esforço inicial é para tomarmos conhecimento do que temos pela frente, mas se continuar assim depois de um mês vai começar a prejudicar o trabalho”, afirma o secretário-executivo, que assumiu o Ministério na sexta-feira 17, quando o titular viajou para Cannes, de onde partiu depois para se encontrar com o presidente Lula em Davos, na Suíça.
Segundo a previsão de Juca, até o fim de janeiro continuarão os jantares depois do expediente num dos restaurantes da Academia de Tênis. Neles, o ministro não come quase nada, mas chega a ficar até 1h30 discutindo assuntos do Ministério. Secretário do Livro e da Leitura, o poeta Wally Salomão resume o ritmo de trabalho nessa reta inicial. “Tenho passado a noite acordado”, diz.
Enquanto isso, o violão de Gil permanece esquecido. A exceção foi na festa da quarta-feira 15, na Funarte, quando, atendendo ao pedido dos funcionários do Ministério, o compositor levou seu instrumento para uma canja. Cantou três músicas – Drão, Three Little Birds, de Bob Marley, e Esperando na Janela – e se desculpou pela desafinação das cordas. “O violão tem ficado num canto, sem sair da capa. É sinal de que estou me dedicando”, disse, sem lamentar os ossos do novo ofício.